domingo, 21 de setembro de 2014

prólogo


 cheia de intenção a mão toca o vazio - graciosa. uma bailarina sem plateia, diriam os poetas, sem propósito porém ansiosa; e cega. não mantém a forma fixa de estar segurando algo? um papel, um lápis, uma mão qualquer... no repouso retraída de lembrança, trocada em átomos com tudo que há  - o teclado do computador, a maçã, o dinheiro. biblioteca do corpo, conhecedora da forma. e essa forma fixa persistente, esse átomo que ficou ali sobrando, tanta sujeira, lama, restos, corrimão; conhecedora do impuro.
 a direita segura a faca, a esquerda a gaze - justiceira e amparo.

 mas no momento ela estava parada no seu seio esquerdo, rígida e lúcida, mas não era ela, era o medo, era eu. medo e lúcida, rígida e esquerda, você pode me descrever para seus amigos no meio tempo em que eu fui ao banheiro e voltei, nos sussurros, nos risos - eu preferia levar um tapa. talvez você o fez e eu não me atentei, o que importa era a mão parada de musa, mármore, minha no teu logo após enquanto ninguém olhava. duas musas, mudas, se tocando pela primeira vez na imobilidade do mármore.

 quem viu esta cena impressionista fui eu apenas, frequentadora de artes plásticas diversas e sonhadora infinita. no seu romance secreto, meu quadro fugaz é uma nota de rodapé - eu, lamento. aí a dor maior de existir: ser pequeno ao outro, ser desconhecido do outro ou não ser nada - eternamente - nada além de uma sombra. eu estava triste e nem estava ali. minha morte está cravada nesse eterno/nada/alheio - aí eu mergulho nesse lamento de existir e viver e chorar e etc etc etc. move-me no vazio o ambíguo, o incerto, o vacilo, e sem isso (ou sem você.s) não haveria o combustível primórdio de movimento. pois, desde o início, eu era reticência e precisava me preencher.

 suas mãos me preencheram muito bem - molhada. por fora. mas era o limite e era tudo. eu rescendia ao rio que corria em mim, mesmo que estátua. "quando você chega?" era minha pergunta boiando no rio e eu molhadíssima, eu violenta sempre sempre sempre imunda e rápida, ainda que no recato. "não quero dedo" mas me arrependi depois. cheia de intenção ela toca o vazio, e eu sinto - ela é bailarina.

 um papel, um tecido, uma mão qualquer... meu rio desemboca no retrato gasto dum passado sem cor, inválido, pouco muito pouco. minha emboca num gesto frívolo - e se perde - nos sedimentos: forma fixa, persistente, areia que fica ali sobrada, tanta sujeira, lama, restos - na boca do amar.

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