quarta-feira, 29 de maio de 2013

Pobres considerações


entre folhas secas no quarto de alguém que viveu

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 _ um gesto que, por maior que eu, me transpassava e me obstruía - fiquei impossível - não segui dormindo. despertei no meio duma gota fria de suor, que me envolveu nos segundos antes desse gesto tão grande onde eu toco seu rosto; ele me traz sua presença apagada ... ainda fito o momento que passava por mim, agora dissipado. cheira.
 preciso de um corpo que contenha, que defina. preciso me conter como um corpo d'água e estou assustadíssimo de despertar. não entendo. vou sentar à beira da cama e seu rosto ainda é táctil, vivo. eu havia me esquecido de detalhes, mas esse gesto me trouxe os vincos ao redor dos olhos dele feito caminhos na terra. há tanta coisa para lembrar, entre dias e dias e de repente, ele. um corpo morto por silêncios. palpito. trêmulo. 

 ontem eu, transcendendo, entendi.
 entendi a vida e como um corpo fora de si permanece outro. precisei chorar mas não pensei nele, pensei naqueles que amo e amei, enquanto em êxtase dentro de mim dentro de um palco ou uma luz ... entendi amor e fui amor. ali começou meu gesto, que era menor e carregava minhas mãos em levezas, minha boca em diálogos, meus olhos em lágrimas. cheguei em casa com outros corpos no lugar do meu e apenas deitei. entendido da vida com um erro que eu não sabia ou quis. mas esse gesto veio comigo e me traiu fazendo compreender um homem dado morto, calado, desfragmentando meu corpo em poemas.

 eu, sublimando em versos.

 como cheguei aqui não sei. creio que foram anos ou meses que me distanciam dele e do seu corpo tão esguio como linhas que, por acaso, se encontraram. além disso, não há o que contar: ele escrevia poemas - dizer basta para estancar tragédias e possibilidades daquele menino todo homem. levava roupas simples. tinha o quarto simples e as palavras no entanto ... desdobravam-se em barquinhos que eu deixava a corrente do pensamento levar silenciosos sem ressoar metálicos na minha mente. eu evitava pensar; ele excedia o pensamento e transbordava nos olhos.
 era, sobretudo, inocente nos modos. eu carregava malícias que ele não podia saber. na confusão da torrente de ideias e da inocência nasciam tolices, palavras erradas, problemas inventados, toda irrealidade táctil de uma mente que se sobrepunha à si própria em meio ao amor. depois, compreendi - não como hoje compreendi poesia, porém - e sorria ao lembrar do vacilo dum corpo. ri. ele perpetrava pequenos atos violentos. jogava entre afeições palavrinhas maldosas. até que por não-sei-o-quês ele sumiu. e eu fingi esbravejar mas aceitei o ódio como se aceita uma palavra dura duma criança.
 então fui despido daquele pequeno passado - seguindo, amando, doando-me de corpo ao que apareceu.

 me subiu sob o corpo um verso: quem são os anjos? serão essas sombras que te escapam do sono? e fiquei acordado aqui tentando voltar ao que fui até ontem, destranscendido puro e simples, esquivo de sonhos ...

 não sei escrever. essas palavras me vieram nascendo por outras mãos, pelo gesto de sobre-mim. suspeito saber onde andam os olhos sujos dele, sujos sempre de melancolias tão vivas, animaizinhos que se debatiam, debates, abates. estão os olhos perdidos em lembranças. hoje invento uma explicação para essa dor que me entorpeceu através dos espelhos - nunca fui assim, des-amado. surgindo dum egoísmo ao qual conheço quero não-entender os porquês dele. e estavam enterradas todas essas sombras de ideia, como hoje numa noite pretensamente clara ele se assombra sobre mim? o que me desespera é que não são acusações (antes fossem) mas são apenas tristezas que se prolongam para fora das raízes dos verbos. não me era permitido compreendê-lo e agora numa torrente de saber não só compreendo mas recebo. quero fazer perguntas descabidas para as quais não existem orações e te bater com punhos abertos ... mas, meu deus, ele ofereceria a outra face e aí nasce meu desespero incontido. ele sorriria feliz.

 a noite me delata. os objetos caseiros se esbarram. uma vez de pé, me deito. deitado, levanto. escorro pelas paredes sem me espalhar pelo chão - em crayon, esboço um verso e um retrato na parede da sala de estar sem cortinas, entre penumbras dos postes lá fora. agora me veio que ele deve ter achado quase bárbaro a sala descortinada quando aqui dormiu. mas, de fato, ele dormiria em qualquer lugar, ele apenas buscava um corpo como um barco ao qual se agarrar. ali, era eu e estava presente solidificado. ele dormiria em qualquer lugar pois ele não estava de corpo presente como eu. onde mora sua essência? preciso questionar suas horas pois agora que você me veio não te conheço ou sinto. passei, rompi, evadi-me. eu era tão feliz.

 agora, parece que consumi a vida.

 ontem sobre mim havia uma luz púrpura - fui jasão mas chorei como uma medeia rasgada. me despi de mim. saí daquilo que me foi dado em batismo e caí no outro lado, era ali a vida pura correndo, tudo compreendi e me era dado ... depois houve festa, barulho, suor ... comemoramos como loucos ... mas acho que o gesto que crescia em mim já era um incômodo quando senti aquela necessidade de voltar e voltei ainda etéreo mas consciente. eu nem lembrei seu nome. como é teu corpo sob a luz?
 porque nasceste da minha escuridão?
 por favor, se subtraia de mim.

 antes que amanheça, preciso ver se o céu não se desdobrou em dois. sua presença não está na casa senão em mim e no céu. corre a rua um frio que conserva qualquer brilho, preciso contar isso à alguém mas me parece impossível ser compreendido de tanta compreensão. entretanto ele saberia o que dizer entre pausas que não se despedaçavam ... mas não posso ligar ou gritar ou quem sabe esperar um encontro inesperado numa estação qualquer, isso seria ceder e preciso entender quem fui não mais quem sou ou entendo. já não me conheço de qualquer forma. meu corpo numa pele em artifícios, minha carne ... que sangue é esse que eu não sorvo ou conheço? quem me deu meus olhos? eu - envelhecerei e ele não saberá meu rosto. eu preciso lhe contar como abro minha carne à sangue frio sobre um palco de fumaças ... você precisa saber homem, mas já está tarde. estou semeado da sua recordação repentina como se num instante fosse descoberto que era possível te amar como a mim mesmo.

 como fosse preciso enfim te reconhecer e me desfazer em verdades - era reparar um erro ou estancar uma flor vítrea. você é tão digno de amor _ meu deus. meu corpo se torna amor, amor em outros nomes como campos ou ígneas rochas. o gesto está totalmente trespassado de mim e eu dele, e, agora enfim, te tomo entre braços impossíveis e sussurrarei: entre marés, me perdoará por aquiescer e sorrir. não dormirei por cinco noites. batizarei outros corpos do teu ... além disso, não há nada que eu possa fazer - deite-se comigo e, por favor, me faça dormir.

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